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Pontos de Vista

Porque tudo na vida tem um ponto de vista

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15
Mai17

Miguel Esteves Cardoso - Muitos, muitos pontos de exclamação para Salvador Sobral!

olhar para o mundo

Muitos, muitos pontos de exclamação para Salvador Sobral!

Viva o Portugal de Salvador Sobral por ser bom sem se armar em bom e por mostrar que a arte e a alma andam juntas e que nada há nesta vida e neste mundo que seja mais forte!

Viva o Portugal de Salvador Sobral por ter desenguiçado uma longa história de derrotas em que ganhar era não ficar em último e vencer era conseguir mais do que zero votos! É assim mesmo!

Viva o Portugal de Salvador Sobral pelo humor na hora da vitória, a dizer perante a Eurovisão inteira que "estava tudo comprado"! É assim mesmo!

Viva o Portugal de Salvador Sobral pela justiça e pela generosidade de ter imediatamente agradecido a Luís Figueiredo o bonito arranjo da canção de Luísa Sobral que ele cantou tão bem! É assim mesmo!

Viva o Portugal de Salvador Sobral pela inteligência de ter dito, no momento da consagração, que daqui a um mês tudo estaria esquecido - porque não estará nem deveria estar, mas é bonito ouvir! É assim mesmo!

Viva o Portugal de Salvador Sobral por se ter marimbado na transmissão da canção vencedora - "Amar Pelos Dois" - para ir buscar Luísa Sobral, a compositora, intérprete e irmã, para cantar com ele, muito bem e cheia de amor! É assim mesmo!

Viva o Portugal de Luísa Sobral por ter escolhido o irmão Salvador para cantar a canção que ela escreveu e a canção com que eles, irmã e irmão, ganharam a final da Eurovisão de 2017! Obrigados e parabéns! É assim mesmo!

Viva o Portugal de Salvador Sobral pela sensibilidade de ter dedicado a vitória dele não à família nem aos portugueses mas a uma comunidade muito mais importante e merecedora: a dos músicos! É assim mesmo!

Viva o Portugal de Salvador Sobral por ter sido valente na cara de todas as contrariedades e de todas as cantilenas azaradas, derrotistas e miseráveis de sempre! É assim mesmo!

Viva o Portugal de Salvador Sobral por ter pensado humildemente - e dito em público - que ninguém ia ligar à vitória dele porque o clube dele, o Benfica, tinha ganho, nesse mesmo dia, o campeonato nacional! É assim mesmo!

Viva o Portugal de Salvador Sobral por ser bom sem se armar em bom e por mostrar que a arte e a alma andam juntas e que nada há nesta vida e neste mundo que seja mais forte! É assim mesmo!

E finalmente, por ser verdade e ser preciso, viva Salvador Sobral sozinho, sem a ajuda de ninguém, livre de todos nós porque, por muito que ele proteste e por muito que nós os portugueses nos colemos a ele, foi ele sozinho que ganhou em Kiev e é isso, sobretudo, que jamais será esquecido!

É mesmo assim.

 

Miguel Esteves Cardoso

Retirado do Público

07
Mar17

Portugal: o melhor país do mundo para portugueses e estrangeiros - Miguel Esteves Cardoso

olhar para o mundo

portugal.jpg

 

Quer queiramos, quer não – tão poucas palavras, tanto verbo querer –, Portugal não é o pior país do mundo. Mas – porque querer é poder – até pode ser. Ser português é ser capaz de pensar como é que Portugal pode ser o pior país do mundo e nós, os que cá vivemos, os mais desgraçados habitantes.

 

Portugal pode ser o pior porque, atendendo aos muitos benefícios que Deus lhe deu – o clima, a beleza das paisagens, o sabor das azeitonas e das uvas, mais tudo aquilo que existe sem ser pelo mérito dos portugueses –, Portugal poderia ser muito melhor do que é.

 

Quando agradecemos o bom tempo, a luz e as praias, está implícito que só continuamos a dispor destas coisas boas porque os políticos não conseguiram até hoje arranjar maneira de vendê-las ou estragá-las de uma vez por todas.

 

Assim, o Portugal que temos é o que resta milagrosamente das piratarias dos nossos dirigentes através dos séculos. Não conseguimos elogiar pessoas como Gonçalo Ribeiro Telles por ter criado parques naturais. Preferimos aplaudi-lo por ter impedido os políticos corruptos de ter vendido tudo em lotes aos construtores civis.

 

Um português não consegue olhar para a paisagem mais bonita sem ter consciência de que não deve faltar muito para ir para o galheiro. “Por enquanto, é assim... sabe-se lá por quanto tempo...”

 

Assim se traz tristeza e desespero à contemplação. Da mesma maneira se olha para as paisagens arruinadas, sem qualquer impulso de esperança ou de activismo: “Aqui fizeram o que queriam e o resultado está à vista...”

 

Só um português sabe o difícil que é defender Portugal em Portugal ou os portugueses junto dos portugueses. A primeira objecção é logo a mais devastadora: “Mas quem é que está a atacar Portugal e os portugueses para tu estares aí todo empenhadinho em defendê-los?”

 

Só os estrangeiros podem atacar Portugal e os portugueses. Se o fazem, ninguém perdoa ou descansa enquanto não forem violentamente rebatidos. Os estrangeiros têm de amar Portugal ou levar a sua falta de amor para outro lugar.

 

Resultado: é tão difícil ser-se estrangeiro em Portugal como português. É uma coisa que se partilha, essa dificuldade, felizmente.

 

Para ouvir portugueses a elogiar Portugal, é preciso atacar Portugal para provocá-los. Nem é preciso ser um ataque desmesurado: basta um insultozinho qualquer.

 

Mesmo assim, não quis fazer uma edição do P2 em que se apresentasse Portugal como o pior país do mundo e os portugueses como os mais violentados cidadãos. Isso já acontece todos os dias.

 

Portugal pode não ser perfeito mas não é nada mau. É de longe o país com mais pessoas portuguesas e mais coisas portuguesas. Para quem gosta de pessoas e coisas portuguesas, Portugal é o melhor sítio onde perseguir esses gostos.

 

Não, não é um paraíso. É um país. Nem é por ser o nosso – a gente sabe lá de quem é. É apenas aquele em que, se não formos estrangeiros, nos podemos queixar à vontade de Portugal e dos portugueses sem que ninguém levante uma sobrancelha. 

 

Miguel Esteves Cardoso

Retirado do Público

03
Nov16

Francisco Louçã - 1143

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franciscoloucã.jpg

 

 

Apareceu escrito, na parede da mesquita de Lisboa, o número “1143”. Esboço anónimo de quem não achou que o que pretendia que fosse um insulto merecia explicação e fugiu depressa, nem vale o esforço da interpretação. Fiquemos pelo óbvio: 1143 é o ano da independência diplomática de Portugal (embora só em 1147 ocorra a conquista de Lisboa). Foi assim que começou o que já tinha começado.

 

Mas há uma pergunta que se pode fazer: nesse ano, onde estava a tolerância e quem era a intolerância? A resposta não é a mais simples. Miguel Esteves Cardoso escreve, e bem, que, nesse tempo como durante muitos mais anos, o Islão era a parte da civilização

.

E, se nos perguntamos quem era a parte tolerante do cerco a Granada, trezentos e cinquenta anos depois (1492), a resposta ainda é: os muçulmanos. Os Reis Católicos eram o reino mais atrasado política, cultural e cientificamente e, sobretudo, mais intolerante e bárbaro. Para estudar medicina, para ler filosofia, a começar pela filosofia clássica da Grécia antiga que era perseguida na Europa, para fazer poesia, para discutir livremente, era melhor viver no mundo muçulmano do que no mundo cristão.

 

Se nos perguntamos onde estava a parte tolerante durante a longa Inquisição, era no mundo muçulmano: os judeus e outros perseguidos fugiam para Constantinopla, onde eram acolhidos.

 

A desagregação posterior destas sociedades, o fracasso e a destruição dos seus regimes laicizantes no século XX, o estímulo e protecção ocidental a ditaduras várias, as perpétuas guerras do petróleo, o empobrecimento da massa popular, o desastre ecológico, o sentimento de exclusão e o renascimento de fanatismos assanhados trouxeram-nos aos dias de hoje, com os demónios à solta. Não tinha que ser assim. E, antes de aceitarmos qualquer prosápia sobre o destino eterno de uma parte do mundo, lembremo-nos de que nem sempre as coisas foram iguais ao que hoje conhecemos, que o Islão não fundamenta a deriva dos assassinos do Charlie Hebdo e que, para que a Europa se livrasse da teocracia, foram precisas revoluções vitoriosas. Ainda precisamos delas, talvez mais do que nunca, para que as pessoas possam viver em paz e com a sua consciência.

 

Francisco Louçã
(do blog Tudomenoseconomia, no jornal Publico)

29
Set16

Miguel Esteves Cardoso - Ser Português é Difícil

olhar para o mundo

 

 

Ser Português é Difícil

 

Os Portugueses têm algum medo de ser portugueses. Olhamos em nosso redor, para o nosso país e para os outros e, como aquilo que vemos pode doer, temos medo, ou vergonha, ou «culpa de sermos portugueses». Não queremos ser primos desta pobreza, madrinhas desta miséria, filhos desta fome, amigos desta amargura. Os Portugueses têm o defeito de querer pertencer ao maior e ao melhor país do mundo. Se lhes perguntarmos “Qual é actualmente o melhor e o maior país do mundo?”, não arranjam resposta. Nem dizem que é a União Soviética nem os Estados Unidos nem o Japão nem a França nem o Reino Unido nem a Alemanha. Dizem só, pesarosos como os kilogramas nos tempos em que tinham kapa: «Podia ter sido Portugal...» E isto que vai salvando os Portugueses: têm vergonha, culpa, nojo, medo de serem portugueses mas «também não vão ao ponto de quererem ser outra coisa».

Revela-se aqui o que nós temos de mais insuportável e de comovente: só nos custa sermos portugueses por não sermos os melhores do mundo. E, se formos pensar, verificamos que o verdadeiro patriotismo não é aquele de quem diz “Portugal é o melhor país do mundo” (esse é simplesmente parvo ou parvamente simples), mas, sim, de quem acredita, inocentemente, que Portugal «podia ser» (ou ter sido) o melhor país do mundo e (eis a parte fundamental, que separa os insectos dos cicofantas) «tem pena que não seja», uma pena daquelas que ardem para toda a vida nos peitos profundos das pessoas boas.

Ser português não é nem a sorte com que sonhamos (não queriam mais nada — nascer logo uma coisa boa!) nem o azar com que vamos azedando. Ser português é um «jeito que se aprende». Não é coisa que vá à bruta ou à má fila. Não é bem que vá a bem (precisa de ser ajudado), mas também não é mal que vá à bruxa. Ser português não é tanto ser feito à imagem de Deus, como os outros povos (todos eles felizes), como estar, à partida, «feito». Cada vez que nasce um ser humano e olha para o bilhete de identidade e verifica que calharam os pedregulhos e os pêsames da portugalidade, diz logo “Pronto — estou feito — sou português”. Devia ter juízo. A única coisa que o absolve é ter, também, razão.

Ser português é «difícil». O resto do mundo não compreende que os Portugueses são especiais, diferentes, bastante giros, bem-educados, antigos, espertos, casos sérios. O resto do mundo acredita sinceramente que o mundo seria exactamente o mesmo sem os Portugueses. Para a grande maioria da população da Terra, a própria «existência» de Portugal é uma surpresa. E não se julgue automaticamente que se trata de uma grande surpresa ou, sequer, de uma surpresa «boa». É mais uma surpresa do género “Ah, sim?”. Como quem aprende que o «baseball» teve origem nos «rounders ingleses». Ah, sim? Que giro! Agora sai da frente do televisor que eu quero ver se este Babe Ruth era tão bom como diziam. Para o resto do mundo, os feitos dos Portugueses não pertencem à história fundamental do Universo. Pertencem, quando muito, à secção dos passatempos, do “Não me digas!” e do “Acredite se quiser”. Ser português é um ser delicado. Ser português não é «ser humano». É ser que tem muito para fazer só para ser «vivo».

Os políticos dizem que é preciso andar para a frente, modernizar, desenvolver, «mudar» Portugal, presumivelmente para melhor, porque este (nisto estão todos de acordo) não presta. Os poetas sonham com países que nunca existiram ou existirão, ou que já existiram e jamais existirão outra vez. Ninguém está contente com o que é, ou com onde está, ou com o que tem. Os Portugueses, o povo, a nação, os ditos, os implicados, envolvidos e lixados, esses nem ideia têm ou fazem — para eles a própria noção de Portugal foi um raio de ideia para começar. Mas o que é preciso não é nem tão drástico nem tão espectacular. O que é preciso é «continuar» Portugal.

Continuar Portugal não é uma acção delicada, ou uma campanha urgente, ou uma tarefa que exija o sacrifício de todos os cidadãos. É simplesmente continuar a perguntar, a barafustar, a amaldiçoar o dia em que se nasceu desta cor, nesta pele, com este coração mole e fácil de apertar e espremer. Continuar Portugal é acreditar que a vida seria pior sem ele, pior se a Europa começasse pela Espanha, pior se fôssemos suíços ou belgas ou finlandeses. Continuar Portugal é ser português e dizer “Pronto, que se lixe, o que é que eu hei-de fazer?”. E acreditar na diferença que faz a nossa maneira de ser, e de sermos portugueses, como um cardiologista acredita que o coração foi feito para continuar a bater.
E foi. E, o que é mais engraçado, continua!

Miguel Esteves Cardoso, in 'Os Meus Problemas'

 

Retirado de Citador

08
Set16

O que verdadeiramente mata Portugal - Eça de Queirós

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eça.jpg

 

O Que Verdadeiramente Mata Portugal

 

O que verdadeiramente nos mata, o que torna esta conjuntura inquietadora, cheia de angústia, estrelada de luzes negras, quase lutuosa, é a desconfiança. O povo, simples e bom, não confia nos homens que hoje tão espectaculosamente estão meneando a púrpura de ministros; os ministros não confiam no parlamento, apesar de o trazerem amaciado, acalentado com todas as doces cantigas de empregos, rendosas conezias, pingues sinecuras; os eleitores não confiam nos seus mandatários, porque lhes bradam em vão: «Sede honrados», e vêem-nos apesar disso adormecidos no seio ministerial; os homens da oposição não confiam uns nos outros e vão para o ataque, deitando uns aos outros, combatentes amigos, um turvo olhar de ameaça. Esta desconfiança perpétua leva à confusão e à indiferença. O estado de expectativa e de demora cansa os espíritos. Não se pressentem soluções nem resultados definitivos: grandes torneios de palavras, discussões aparatosas e sonoras; o país, vendo os mesmos homens pisarem o solo político, os mesmos ameaços de fisco, a mesma gradativa decadência. A política, sem actos, sem factos, sem resultados, é estéril e adormecedora.

Quando numa crise se protraem as discussões, as análises reflectidas, as lentas cogitações, o povo não tem garantias de melhoramento nem o país esperanças de salvação. Nós não somos impacientes. Sabemos que o nosso estado financeiro não se resolve em bem da pátria no espaço de quarenta horas. Sabemos que um deficit arreigado, inoculado, que é um vício nacional, que foi criado em muitos anos, só em muitos anos será destruído.

O que nos magoa é ver que só há energia e actividade para aqueles actos que nos vão empobrecer e aniquilar; que só há repouso, moleza, sono beatífico, para aquelas medidas fecundas que podiam vir adoçar a aspereza do caminho.


Trata-se de votar impostos? Todo o mundo se agita, os governos preparam relatórios longos, eruditos e de aprimorada forma; os seus áulicos afiam a lâmina reluzente da sua argumentação para cortar os obstáculos eriçados: as maiorias dispõem-se em concílios para jurar a uniformidade servil do voto. Trata-se dum projecto de reforma económica, duma despesa a eliminar, dum bom melhoramento a consolidar? Começam as discussões, crescendo em sonoridade e em lentidão, começam as argumentações arrastadas, frouxas, que se estendem por meses, que se prendem a todo o incidente e a toda a sorte de explicação frívola, e duram assim uma eternidade ministerial, imensas e diáfanas.

O país, que tem visto mil vezes a repetição desta dolorosa comédia, está cansado: o poder anda num certo grupo de homens privilegiados, que investiram aquele sacerdócio e que a ninguém mais cedem as insígnias e o segredo dos oráculos. Repetimos as palavras que há pouco Ricasoli dizia no parlamento italiano: «A pátria está fatigada de discussões estéreis, da fraqueza dos governos, da perpétua mudança de pessoas e de programas novos.»


Eça de Queirós, in 'Distrito de Évora'

 

Retirado de Citador

22
Jul16

Eça de Queirós - O Que Verdadeiramente Mata Portugal

olhar para o mundo

O Que Verdadeiramente Mata Portugal

O que verdadeiramente nos mata, o que torna esta conjuntura inquietadora, cheia de angústia, estrelada de luzes negras, quase lutuosa, é a desconfiança. O povo, simples e bom, não confia nos homens que hoje tão espectaculosamente estão meneando a púrpura de ministros; os ministros não confiam no parlamento, apesar de o trazerem amaciado, acalentado com todas as doces cantigas de empregos, rendosas conezias, pingues sinecuras; os eleitores não confiam nos seus mandatários, porque lhes bradam em vão: «Sede honrados», e vêem-nos apesar disso adormecidos no seio ministerial; os homens da oposição não confiam uns nos outros e vão para o ataque, deitando uns aos outros, combatentes amigos, um turvo olhar de ameaça. Esta desconfiança perpétua leva à confusão e à indiferença. O estado de expectativa e de demora cansa os espíritos. Não se pressentem soluções nem resultados definitivos: grandes torneios de palavras, discussões aparatosas e sonoras; o país, vendo os mesmos homens pisarem o solo político, os mesmos ameaços de fisco, a mesma gradativa decadência. A política, sem actos, sem factos, sem resultados, é estéril e adormecedora.

Quando numa crise se protraem as discussões, as análises reflectidas, as lentas cogitações, o povo não tem garantias de melhoramento nem o país esperanças de salvação. Nós não somos impacientes. Sabemos que o nosso estado financeiro não se resolve em bem da pátria no espaço de quarenta horas. Sabemos que um deficit arreigado, inoculado, que é um vício nacional, que foi criado em muitos anos, só em muitos anos será destruído.

O que nos magoa é ver que só há energia e actividade para aqueles actos que nos vão empobrecer e aniquilar; que só há repouso, moleza, sono beatífico, para aquelas medidas fecundas que podiam vir adoçar a aspereza do caminho.
Trata-se de votar impostos? Todo o mundo se agita, os governos preparam relatórios longos, eruditos e de aprimorada forma; os seus áulicos afiam a lâmina reluzente da sua argumentação para cortar os obstáculos eriçados: as maiorias dispõem-se em concílios para jurar a uniformidade servil do voto. Trata-se dum projecto de reforma económica, duma despesa a eliminar, dum bom melhoramento a consolidar? Começam as discussões, crescendo em sonoridade e em lentidão, começam as argumentações arrastadas, frouxas, que se estendem por meses, que se prendem a todo o incidente e a toda a sorte de explicação frívola, e duram assim uma eternidade ministerial, imensas e diáfanas.

O país, que tem visto mil vezes a repetição desta dolorosa comédia, está cansado: o poder anda num certo grupo de homens privilegiados, que investiram aquele sacerdócio e que a ninguém mais cedem as insígnias e o segredo dos oráculos. Repetimos as palavras que há pouco Ricasoli dizia no parlamento italiano: «A pátria está fatigada de discussões estéreis, da fraqueza dos governos, da perpétua mudança de pessoas e de programas novos.»


Eça de Queirós, in 'Distrito de Évora'
 
Retirado de Citador
18
Jul16

Fernanda Câncio - Éder e os outros

olhar para o mundo

fernandacancio.jpg

 

O português que marcou o golo que fez Portugal vencedor do Euro 2016 esteve anteontem no Jornal da Noite da SIC. Explicou porque é que, mal marcou, correu à desfilada, afastando os camaradas que queriam submergi-lo no triunfo, até se afundar nos braços de um dos técnicos, junto ao banco. Queria ir, disse, festejar com quem estava ali, no lugar onde tinha passado grande parte do campeonato - o de suplente.

 

Era uma das minhas curiosidades desde domingo - como o porquê que, saiba eu, Quaresma ainda não disse sobre ter agarrado assim na cabeça do francês, mais o de ser aquela música dos Xutos o talismã da seleção. São perguntas fáceis. Há outras muito mais difíceis. A primeira é a que me surge ao ver na TV este Éder tão negro herói de um país onde todos os dias os negros, claros ou escuros, ouvem "vai para a tua terra"; um país que nas TV e jornais e em todos os lugares de representação - à exceção dos de atleta - devolve aos portugueses negros a evidência de uma cegueira.

 

Colour blind é a expressão usada em inglês para a feliz capacidade de ver pessoas, não a sua cor. A nossa capacidade como país é oposta: não vemos a invisibilidade dos portugueses negros. Tão cegos somos que, quando Van Dunem tomou posse, houve quem tivesse considerado "racista" o júbilo e a comoção dos que sublinharam ser a primeira vez que temos alguém negro no governo. Oh, é contraditório, dirão, querer afirmar a igualdade sublinhando a diferença. Mas não houve nenhuma luta pela igualdade que não tenha passado por aí. Nenhuma que não faça a pergunta que nesta semana vi num vídeo de uma palestra nos EUA, na qual uma mulher (branca) pergunta a uma plateia branca quantas daquelas pessoas gostariam de ser tratadas como os negros. Os assistentes entreolham-se, embaraçados. E ela conclui: "Ninguém? Quer dizer que sabem que há uma diferença de tratamento e que não a querem para vocês. Mas admitem-na para os outros."

 

No mesmo dia da entrevista de Éder, o The New York Times noticiava um inquérito, efetuado após o homicídio de cinco polícias brancos em Dallas (durante uma manifestação do movimento Black Lives Matter, de protesto contra homicídios de negros por polícias), no qual 69% dos americanos admitem que as relações raciais são geralmente más e estão a ficar piores. 48 anos após a morte de Luther King, quando chega ao fim o segundo mandato do primeiro presidente negro, num país onde há juízes negros, pivôs negros, jornalistas negros, senadores negros - e décadas de discriminação positiva na administração pública -, as coisas estão assim.

 

Podemos olhar para isso e achar que é um problema dos EUA. Ou pensar sobre e concluir que tem de ser também um problema - um problema que nos recusamos a enfrentar, até no facto de não sabermos, por bem intencionado mas perverso impedimento constitucional, quantos portugueses negros há - neste país onde os negros são uma espécie de suplentes, no banco a ver o jogo. À espera de uma oportunidade. Até quando?

 

Fernanda Câncio

 

Retirado do DN

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