Para mim, não filmar não é uma opção. Ser realizadora é uma necessidade vital, mas também política, social e, principalmente, existencial. Filmo, logo existo. Podem-nos tirar tudo: a liberdade, a vida, o conforto, tudo menos o sonho, o ponto de vista, o olhar próprio, o impulso que nos faz sair de nós e criar - o meu impulso é filmar.
2ª parte
Para FILMAR tive que optar por técnicas radicais de sobrevivência.
Tentei obter financiamento para filmar. Não encontrei quaisquer apoios. Confrontei-me diariamente com a impossibilidade de continuar a fazer filmes. Foi desta impossibilidade que fiz “Vida Queima”: decidi filmar a minha própria impossibilidade de filmar, através duma docuficção, ou seja, introduzindo elementos de ficção num quotidiano que era o meu e o dos meus amigos, filhos que somos dum sonho de Europa de progresso social que as gerações antes de nós construíram e que nos é agora negado. É esta geração sacrificada de jeunes diplome precaire que eu desafio para fazer este filme, sob a forma misturada de ficção e documentário: filmo-os e filmo-me (sob a forma duma actriz que me representa) durante 2 meses.
No início chamava-se “filme sem câmara” porque eu não tinha câmara.
Depois de várias tentativas consegui através duma fundação dinheiro para comprar material para filmar ao propor-me fazer exactamente um retrato das pessoas que deste grupo eram encenadores de teatro - cena que vemos no filme. A montagem desse documentário no estúdio onde eu estava a montar, vemo-la também em “Vida Queima” sob a forma de montagem do próprio filme que estamos a ver, no final.
No início deste filme, vemos Sara a escrever uma cena dum filme e ao mesmo tempo que escreve, a realidade ultrapassa-a e ela está nesse limbo entre a realidade e a ficção. É essa a história da origem deste filme.
O velho cinema em ruínas que vemos no filme é o cinema da minha infância, do “Porto da minha infância” (diferente do de Manoel de Oliveira). Eu ia todos os Sábados às sessões do cineclube onde me inscrevi quando tinha 5 anos e como fui obrigada a ir para o Porto ao passar diante do cinema vejo que o estão a destruir para o transformar num shopping. Decido entrar clandestinamente com a actriz que me representa e a equipa (éramos 3) e filmamos imediatamente. Como ela teve que sair porque protagonizava uma espectáculo no teatro em frente, eu fiz nessa cena a docuficção completa: vesti a roupa dela ( que era o a minha) e continuamos a filmar. metade da cena é ela, metade sou eu, que comecei em 1999 a filmar em película, fiz 1 curta e 2 longas metragens e me confronto com a impossibilidade de o continuar a fazer.
Eu trabalhei durante 9 anos com um dos maiores produtores independentes europeus, um velho pirata do cinema de autor, que também ele afectado pela crise se tornou alguém com quem foi impossível continuar a colaborar. Esse processo está retratado no filme.
A mercearia onde Sara vai comprar para pagar o pão, o leite, a fruta, a os legumes e depois não tem dinheiro para pagar é o mini-mercado onde eu me via confrontada com a minha precariedade quando ia comprar comida e a dona da loja faz dela mesma: verifica se eu não levei uma migalha a mais do que aquilo que eu conseguia pagar.
A lista é interminável.
Não há cena neste filme que não seja puro docu-ficção.
Raquel Freire
Ajuda a financiar a finalizaçao deste filme
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Retirado de Vida Queima