Frases de António Lobo Antunes no Facebook - esquecer uma mulher inteligente custa um número incalculável de mulheres estúpidas
esquecer uma mulher inteligente custa um número incalculável de mulheres estúpidas
António Lobo Antunes
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esquecer uma mulher inteligente custa um número incalculável de mulheres estúpidas
António Lobo Antunes
A cultura é uma coisa apavorante para os ditadores, um povo que nunca lê será um povo escravizado
António Lobo Antunes
A melhor maneira de lidar com os outros é tomá-los por aquilo que eles acham que são e deixá-los em paz
Lobo Antunes
Ali, na sala de quimioterapia, jamais escutei um gemido, jamais vi uma lágrima. Somente feições sérias, de uma seriedade que não topei em mais parte alguma, rostos com o mundo inteiro em cada prega, traços esculpidos a fogo na pele
Para Luís Costa
O lugar onde, até hoje, senti mais orgulho em ser pessoa foi o Serviço de Oncologia do Hospital de Santa Maria, onde a elegância dos doentes os transforma em reis. Numa das últimas vezes que lá fui encontrei um homem que conheço há muitos anos. Estava tão magro que demorei a perceber quem era. Disse-me
- Abrace-me porque é o último abraço que me dá
durante o abraço
- Tenho muita pena de não acabar a tese de doutoramento
e, ao afastarmo-nos, sorriu. Nunca vi um sorriso com tanta dor entre parêntesis, nunca imaginei que fosse tão bonito.
Com o meu corpo contra o dele veio-me à cabeça, instantâneo, o fragmento de um poema do meu amigo Alexandre O'Neill, que diz que apenas entre os homens, e por eles, vale a pena viver. E descobri-me cheio de respeito e amor. Um rapaz, de cerca de vinte anos, que fazia quimioterapia ao pé de mim, numa determinação tranquila:
- Estou aqui para lutar
e, por estranho que pareça, havia alegria em cada gesto seu. Achei nele o medo também, mais do que o medo, o terror e, ao mesmo tempo que o terror, a coragem e a esperança.
A extraordinária delicadeza e atenção dos médicos, dos enfermeiros, comoveu-me. Tropecei no desespero, no malestar físico, na presença da morte, na surpresa da dor, na horrível solidão da proximidade do fim, que se me afigura de uma injustiça intolerável. Não fomos feitos para isto, fomos feitos para a vida. O cabelo cresce-me de novo, acho-me, fisicamente, como antes, estou a acabar o livro e o meu pensamento desvia-se constantemente para a voz de um homem no meu ouvido
- Acabar a tese de doutoramento, acabar a tese de doutoramento, acabar a tese de doutoramento
porque não aceito a aceitação, porque não aceito a crueldade, porque não aceito que destruam companheiros. A rapariga com a peruca no braço da cadeira. O senhor que não olhava para ninguém, olhava para o vazio. Ali, na sala de quimioterapia, jamais escutei um gemido, jamais vi uma lágrima. Somente feições sérias, de uma seriedade que não topei em mais parte alguma, rostos com o mundo inteiro em cada prega, traços esculpidos a fogo na pele. Vi morrer gente quando era médico, vi morrer gente na guerra, e continuo sem compreender. Isso eu sei que não compreenderei. Que me espanta. Que me faz zangar. Abrace-me porque é o último abraço que me dá: é uma frase que se entenda, esta? Morreu há muito pouco tempo. Foda-se. Perdoem esta palavra mas é a única que me sai. Foda-se. Quando eu era pequeno ninguém morria. Porque carga de água se morre agora, pelo simples facto de eu ter crescido? Morra um homem fique fama, declaravam os contrabandistas da raia. Se tivermos sorte alguém se lembrará de nós com saudade. De mim ficarão os livros. E depois? Tolstoi, no seu diário: sou o melhor; e depois? E depois nada porque a fama é nada.
O que é muito mais do que nada são estas criaturas feridas, a recordação profundamente lancinante de uma peruca de mulher num braço de cadeira. Se eu estivesse ali sozinho, sem ninguém a ver-me, acariciava uma daquelas madeixas horas sem fim. No termo das sessões de quimioterapia as pessoas vão-se embora. Ao desaparecerem na porta penso: o que farão agora? E apetece-me ir com eles, impedir que lhes façam mal:
- Abrace-me porque talvez não seja o último abraço que me dá.
Ao M. foi. E pode afigurar-se estranho mas ainda o trago na pele. Durante quanto tempo vou ficar com ele tatuado? O lugar onde, até hoje, senti mais orgulho em ser pessoa foi o Serviço de Oncologia do Hospital de Santa Maria onde a dignidade dos escravos da doença os transforma em gigantes, onde só existem, nas palavras do Luís, Heróis.
Onde só existem Heróis. Não estou doente agora. Não sei se voltarei a estar. Se voltar a estar, embora não chegue aos calcanhares de herói algum, espero comportar-me como um homem. Oxalá o consiga. Como escreveu Torga o destino destina mas o resto é comigo. E é. Muito boa tarde a todos e as melhoras: é assim que se despedem no Serviço de Oncologia. Muito boa tarde a todos e até já, mesmo que seja o último abraço que damos.
António Lobo Antunes
Retirado da Visão
A Idealização do Amor
Eu estava a pensar na forma como se poderá entender o amor, à luz da minha formação. Da minha perspectiva, depende daquilo que o outro representa, se o outro é um prolongamento nosso, é uma parte nossa, como acontece muitas vezes, ou é uma idealização do eu de que falaria o Freud. No sentido psicanalítico poder-se-ia dizer que o amor corresponde ao eu ideal e, portanto, à procura de qualquer coisa de ideal que nós colocamos através de um mecanismo de identificação projectiva no outro.
Portanto, à luz de uma perspectiva científica, como é apesar de tudo a psicanalítica, o problema começa a pôr-se de uma forma um bocado diferente. Nesse sentido e na medida em que o objecto amado é sempre idealizado e nunca é um objectivo real, a gente, de facto, nunca se está a relacionar com pessoas reais, estamos sempre a relacionarmo-nos com pessoas ideias e com fantasmas. A gente vive, de facto, num mundo de fantasmas: os amigos são fantasmas que têm para nós determinada configuração, ou os pais, ou os filhos, etc.
(...) O amor é uma coisa que tem que tem que ver de tal forma com todo um mundo de fantasmas, com todo um mundo irreal, com todo um mundo inventado que nós carregamos connosco desde a infância, que até poderá haver, eventualmente, amor sem objecto. O amor não será, assim, necessariamente, uma luta corpo a corpo, ou uma luta corporal, mas pode ter que ver realmente com outras coisas, uma idealização, um desejo de encontrar qualquer coisa de perdido, nosso, que é normalmente isso que se passa, no amor neurótico, ou mesmo não neurótico. Quer dizer, é a procura de encontrarmos qualquer coisa que a nós nos falta e que tentamos encontrar no outro e nesse caso tem muito mais que ver connosco do que com a outra pessoa. Normalmente, isso passa-se assim e também não vejo que seja mau que, de facto, se passe assim.
António Lobo Antunes, in "Diário Popular (1979)"
Passei a Faculdade a escrever. Não estudava, não ia às aulas, houve exames a que nem sequer compareci.
Ainda hoje me espanta a paciência com que o meu pai aturou isso tudo, ele que era muito autoritário e, por vezes, violento. Argumentava que queria ser escritor, não queria ser médico, soube muito mais tarde que o meu pai, para meu espanto, tinha a certeza que eu tinha talento embora não lhe mostrasse o que fazia: periodicamente queimava tudo junto à figueira do quintal, depois soube que ele ia lá sem me dizer nada, lia os restos que ficavam na cinza e copiava-os para um caderno verde. O meu pai possuía um respeito sagrado pelos artistas e talvez, na sua cabeça, pensasse que eu era um deles, enquanto eu, pouco mais do que um miúdo, vivia atormentado pelas minhas deficiências, sempre a dizer-me
- Ainda não é isto, ainda não é isto e levei vinte anos a encontrar o que seria a minha voz, quando me apareceu a Memória de Elefante. Disse
- Ainda não é isto mas acho que descobri o caminho.
E, depois, seguiu-se o trabalho de fazer crescer aquilo tudo. Mas, nessa altura, já havia terminado a Faculdade de Medicina, já havia passado mais de três anos na tropa, já vivera os horrores de África. Até então fora o tormento do curso, que o fez sofrer a ele e me aborrecia a mim. Mal começava a estudar pensava logo
- Devia estar a escrever e voltava aos poemas péssimos e à prosa mais do que medíocre de que então era capaz, certo que, escondido, morava em mim um grande talento. Não certo, certíssimo, ao ponto de sacrificar fosse o que fosse à literatura. Pai, agradeço-lhe a paciência que teve para comigo, peço-lhe perdão de o haver humilhado com a miséria das minhas notas, agradeço que no fundo de si, embora nunca mo dissesse, me haja compreendido. A certa altura, a meio do curso, aconteceu uma coisa que me abalou muito. Era o final dos anos 60, em que os estudantes se levantavam contra a ditadura: cargas policiais, violência, prisões. Tudo isto me passou um bocado ao lado, entregue, como estava, à minha luta com as palavras. Um colega, no hospital, entregou-me, com grandes pedidos de segredo, um maço de folhas policopiadas. Na primeira página estava escrito Praça da Canção e, por baixo, o nome do autor, que nada me dizia: Manuel Alegre. Foi certamente o livro mais lido, mais comentado, mais entusiasmante, mais influente para a minha geração. Num segundo
(pareceu-me que num segundo) tornou-se a bandeira dos estudantes contra o fascismo e a monstruosidade que vivíamos.
Não me interessou a sua qualidade literária. Interessou-me a corajosa chama daqueles versos e o imenso coração do autor.
Claro que Manuel Alegre era um poeta, não me ralou o tamanho do poeta que ele era, interessou-me o tamanho do que ele dizia.
A ousadia com que fez arder uma geração inteira, e o incêndio que levantou sozinho. Uma ocasião, na fronteira com a Zâmbia, morreu-me um camarada. Só sei dizer assim: morreu-me, porque me morreu de facto. De imediato veio-me à cabeça um poema de Manuel Alegre
Ó meu amigo que nunca mais acenderás no meu o teu cigarro
e comecei a chorar. Só quem passou por uma desgraça assim é capaz de entender isto até ao osso
Ó meu amigo que nunca mais acenderás no meu o teu cigarro.
Esta, e outras passagens do livro, ficaram comigo para sempre, ficarão comigo para sempre: que nunca mais acenderás no meu o teu cigarro.
Foi Manuel Alegre que o escreveu, e é a Manuel Alegre que o devo, porque se trata de uma prenda que nenhum dinheiro paga. Faz cinquenta anos que o livro surgiu, cinquenta anos de gratidão da minha parte. O Poeta mandou-me um exemplar comemorativo do aniversário do livro, com uma dedicatória cuja generosidade me tocou imenso. Manuel, não imaginas quanto estiveste comigo em África e quanto continuas comigo porque, em certo sentido, nunca saímos de lá. E tu ajudaste-me naquele exílio muito mais do que imaginas. Tenho pena que já não fumes porque o brinde que queria fazer-te agradecendo o muito que deste sem o saberes, ao estudantezinho anónimo que eu era, ao militar anónimo que eu fui, seria estender o meu cigarro para ti, dizer-te olhos nos olhos
Ó meu amigo que nunca mais acenderás no meu o teu cigarro
e esconder uma lágrima de homem para homem num chupão imenso.
ANTÓNIO LOBO ANTUNES
Retirado da Visão
Portugal visto por
António Lobo Antunes
Agora sol na rua a fim de me melhorar a disposição, me reconciliar com a vida.
Passa uma senhora de saco de compras: não estamos assim tão mal, ainda compramos coisas, que injusto tanta queixa, tanto lamento.
Isto é internacional, meu caro, internacional e nós, estúpidos, culpamos logo os governos.
Quem nos dá este solzinho, quem é? E de graça. Eles a trabalharem para nós, a trabalharem, a trabalharem e a gente, mal agradecidos, protestamos.
Deixam de ser ministros e a sua vida um horror, suportado em estoico silêncio. Veja-se, por exemplo, o senhor Mexia, o senhor Dias Loureiro, o senhor Jorge Coelho, coitados. Não há um único que não esteja na franja da miséria. Um único. Mais aqueles rapazes generosos, que, não sendo ministros, deram o litro pelo País e só por orgulho não estendem a mão à caridade.
O senhor Rui Pedro Soares, os senhores Penedos pai e filho, que isto da bondade as vezes é hereditário, dúzias deles.
Tenham o sentido da realidade, portugueses, sejam gratos, sejam honestos, reconheçam o que eles sofreram, o que sofrem. Uns sacrificados, uns Cristos, que pecado feio, a ingratidão.
O senhor Vale e Azevedo, outro santo, bem o exprimiu em Londres. O senhor Carlos Cruz, outro santo, bem o explicou em livros. E nós, por pura maldade, teimamos em não entender. Claro que há povos ainda piores do que o nosso: os islandeses, por exemplo, que se atrevem a meter os beneméritos em tribunal.
Pelo menos nesse ponto, vá lá, sobra-nos um resto de humanidade, de respeito.
Um pozinho de consideração por almas eleitas, que Deus acolherá decerto, com especial ternura, na amplidão imensa do Seu seio. Já o estou a ver:
- Senta-te aqui ao meu lado ó Loureiro
- Senta-te aqui ao meu lado ó Duarte Lima
- Senta-te aqui ao meu lado ó Azevedo
que é o mínimo que se pode fazer por esses Padres Américos, pela nossa interminável lista de bem-aventurados, banqueiros, coitadinhos, gestores, que o céu lhes dê saúde e boa sorte e demais penitentes de coração puro, espíritos de eleição, seguidores escrupulosos do Evangelho. E com a bandeirinha nacional na lapela, os patriotas, e com a arraia miúda no coração. E melhoram-nos obrigando-nos a sacrifícios purificadores, aproximando-nos dos banquetes de bem-aventuranças da Eternidade.
As empresas fecham, os desempregados aumentam, os impostos crescem, penhoram casas, automóveis, o ar que respiramos e a maltosa incapaz de enxergar a capacidade purificadora destas medidas. Reformas ridículas, ordenados mínimos irrisórios, subsídios de cacaracá? Talvez. Mas passaremos semdificuldade o buraco da agulha enquanto os Loureiros todos abdicam, por amor ao próximo, de uma Eternidade feliz. A transcendência deste acto dá-me vontade de ajoelhar à sua frente. Dá-me vontade? Ajoelho à sua frente indigno de lhes desapertar as correias dos sapatos.
Vale e Azevedo para os Jerónimos, já!
Loureiro para o Panteão já!
Jorge Coelho para o Mosteiro de Alcobaça, já!
Sócrates para a Torre de Belém, já! A Torre de Belém não, que é tão feia. Para a Batalha.
Fora com o Soldado Desconhecido, o Gama, o Herculano, as criaturas de pacotilha com que os livros de História nos enganaram. Que o Dia de Camões passe a chamar-se Dia de Armando Vara. Haja sentido das proporções, haja espírito de medida, haja respeito.
Estátuas equestres para todos, veneração nacional. Esta mania tacanha de perseguir o senhor Oliveira e Costa: libertem-no. Esta pouca vergonha contra os poucos que estão presos, os quase nenhuns que estão presos como provou o senhor Vale e Azevedo, como provou o senhor Carlos Cruz, hedionda perseguição pessoal com fins inconfessáveis.
Admitam-no. E voltem a pôr o senhor Dias Loureiro no Conselho de Estado, de onde o obrigaram, por maldade e inveja, a sair.
Quero o senhor Mexia no Terreiro do Paço, no lugar de D. José que, aliás, era um pateta. Quero outro mártir qualquer, tanto faz, no lugar do Marquês de Pombal, esse tirano. Acabem com a pouca vergonha dos Sindicatos. Acabem com as manifestações, as greves, os protestos, por favor deixem de pecar.
Como pedia o doutor João das Regras, olhai, olhai bem, mas vêde. E tereis mais fominha e, em consequência, mais Paraíso. Agradeçam este solzinho.
Agradeçam a Linha Branca.
Agradeçam a sopa e a peçazita de fruta do jantar.
Abaixo o Bem-Estar.
Vocês falam em crise mas as actrizes das telenovelas continuam a aumentar o peito: onde é que está a crise, então? Não gostam de olhar aquelas generosas abundâncias que uns violadores de sepulturas, com a alcunha de cirurgiões plásticos, vos oferecem ao olhinho guloso? Não comem carne mas podem comer lábios da grossura de bifes do lombo e transformar as caras das mulheres em tenebrosas máscaras de Carnaval.
Para isso já há dinheiro, não é? E vocês a queixarem-se sem vergonha, e vocês cartazes, cortejos, berros. Proíbam-se os lamentos injustos.
Não se vendem livros? Mentira. O senhor Rodrigo dos Santos vende e, enquanto vender o nível da nossa cultura ultrapassa, sem dificuldade, a Academia Francesa.
Que queremos? Temos peitos, lábios, literatura e os ministros e os ex-ministros a tomarem conta disto.
Sinceramente, sejamos justos, a que mais se pode aspirar?
O resto são coisas insignificantes: desemprego, preços a dispararem, não haver com que pagar ao médico e à farmácia, ninharias. Como é que ainda sobram criaturas com a desfaçatez de protestarem? Da mesma forma que os processos importantes em tribunal a indignação há-de, fatalmente, de prescrever. E, magrinhos, magrinhos mas com peitos de litro e beijando-nos uns aos outros com os bifes das bocas seremos, como é nossa obrigação, felizes.
António Lobo Antunes
a melhor maneira de lidar com os outros é tomá-los por aquilo que eles acham que são e deixá-los em paz
António Lobo Antunes
Juro que não vou esquecer...
Nunca vou esquecer o olhar da rapariga que espera o tratamento de radioterapia. Sentada numa das cadeiras de plástico, o homem que a acompanha (o pai?) coloca-lhe uma almofada na nuca para ela encostar a cabeça à parede e assim fica, magra, imóvel, calada, com os olhos a gritarem o que ninguém ouve. O homem tira o lenço do bolso, passa-lho devagarinho na cara e os seus olhos gritam também: na sala onde tanta gente aguarda lá fora, algumas vindas de longe, de terras do Alentejo quase na fronteira, desembarcam pessoas de maca, um senhor idoso de fato completo, botão do colarinho abotoado, sem gravata, a mesma nódoa sempre na manga (a nódoa grita) caminhando devagarinho para o balcão numa dignidade de príncipe. É pobre, vê-se que é pobre, não existe um único osso que não lhe fure a pele, entende-se o sofrimento nos traços impassíveis e não grita com os olhos porque não tem olhos já, tem no lugar deles a mesma pele esverdeada que os ossos furam, a mão esquelética consegue puxar da algibeira o cartãozinho onde lhe marcam as sessões. Mulheres com lenços a cobrirem a ausência de cabelo, outras de perucas patéticas que não ligam com as feições nem aderem ao crânio, lhes flutuam em torno. E a imensa solidão de todos eles. À entrada do corredor, no espaço entre duas portas, uma africana de óculos chora sem ruído, metendo os polegares por baixo das lentes a secar as pálpebras. Chora sem ruído e sem um músculo que estremeça sequer, apagando-se a si mesma com o verniz estalado das unhas. Um sujeito de pé com um saco de plástico. Um outro a arrastar uma das pernas. A chuva incessante contra as janelas enormes. Plantas em vasos. Revistas que as pessoas não lêem. E eu, cheio de vergonha de ser eu, a pensar faltam-me duas sessões, eles morrem e eu fico vivo, graças a Deus sofri de uma coisa sem importância, estou aqui para um tratamento preventivo, dizem-me que me curei, fico vivo, daqui a pouco tudo isto não passou de um pesadelo, uma irrealidade, fico vivo, dentro de mim estas pessoas a doerem-me tanto, fico vivo como, a rapariga de cabeça encostada à parede não vê ninguém, os outros (nós) somos transparentes para ela, toda no interior do seu tormento, o homem poisa-lhe os dedos e ela não sente os dedos, fico vivo de que maneira, como, mudei tanto nestes últimos meses, os meus companheiros dão-me vontade de ajoelhar, não os mereço da mesma forma que eles não merecem isto, que estúpido perguntar
- Porquê ?
que estúpido indignar-me, zango-me com Deus, comigo, com a vida que tive, como pude ser tão desatento, tão arrogante, tão parvo, como pude queixar-me, gostava de ter os joelhos enormes de modo que coubessem no meu colo em vez das cadeiras de plástico
(não são de plástico, outra coisa qualquer, mais confortável, que não tenho tempo agora de pensar no que é)
isto que escrevo sai de mim como um vómito, tão depressa que a esferográfica não acompanha, perco imensas palavras, frases inteiras, emoções que me fogem, isto que escrevo não chega aos calcanhares do senhor idoso de fato completo
(aos quadradinhos, já gasto, já bom para deitar fora)
botão de colarinho abotoado, sem gravata e no entanto a gravata está lá, a gravata está lá, o que interessa a nódoa da manga
(a nódoa grita)
o que interessa que caminhe devagar para o balcão mal podendo consigo, doem-me os dedos da força que faço para escrever, não existe um único osso que não lhe fure a pele, entende-se o sofrimento nos traços impassíveis e não grita com os olhos porque não tem olhos já, tem no lugar deles a mesma pele esverdeada que os ossos furam e me observa por instantes, diga
- António
senhor, por favor diga
- António
chamo-me António, não tem importância nenhuma mas chamo-me António e não posso fazer nada por si, não posso fazer nada por ninguém, chamo-me António e não lhe chego aos calcanhares, sou mais pobre que você, falta-me a sua força e coragem, pegue-me antes você ao colo e garanta-me que não morre, não pode morrer, no caso de você morrer eu
No caso de você e da rapariga da almofada morrerem vou ter vergonha de estar vivo.
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António Lobo Antunes, Visão
Agora sol na rua a fim de me melhorar a disposição, me reconciliar com a vida. Passa uma senhora de saco de compras: não estamos assim tão mal, ainda compramos coisas, que injusto tanta queixa, tanto lamento. Isto é internacional, meu caro, internacional e nós, estúpidos, culpamos logo os governos. Quem nos dá este solzinho, quem é? E de graça. Eles a trabalharem para nós, a trabalharem, a trabalharem e a gente, mal agradecidos, protestamos. Deixam de ser ministros e a sua vida um horror, suportado em estóico silêncio. Veja-se, por exemplo, o senhor Mexia, o senhor Dias Loureiro, o senhor Jorge Coelho, coitados. Não há um único que não esteja na franja da miséria. Um único. Mais aqueles rapazes generosos, que, não sendo ministros, deram o litro pelo País e só por orgulho não estendem a mão à caridade.
O senhor Rui Pedro Soares, os senhores Penedos pai e filho, que isto da bondade às vezes é hereditário, dúzias deles.
Tenham o sentido da realidade, portugueses, sejam gratos, sejam honestos, reconheçam o que eles sofreram, o que sofrem. Uns sacrificados, uns Cristos, que pecado feio, a ingratidão. O senhor Vale e Azevedo, outro santo, bem o exprimiu em Londres. O senhor Carlos Cruz, outro santo, bem o explicou em livros. E nós, por pura maldade, teimamos em não entender. Claro que há povos ainda piores do que o nosso: os islandeses, por exemplo, que se atrevem a meter os beneméritos em tribunal. Pelo menos nesse ponto, vá lá, sobra-nos um resto de humanidade, de respeito.
Um pozinho de consideração por almas eleitas, que Deus acolherá decerto, com especial ternura, na amplidão imensa do Seu seio. Já o estou a ver Senta-te aqui ao meu lado ó Loureiro Senta-te aqui ao meu lado ó Duarte Lima Senta-te aqui ao meu lado ó Azevedo que é o mínimo que se pode fazer por esses Padres Américos, pela nossa interminável lista de bem-aventurados, banqueiros, coitadinhos, gestores que o céu lhes dê saúde e boa sorte e demais penitentes de coração puro, espíritos de eleição, seguidores escrupulosos do Evangelho. E com a bandeirinha nacional na lapela, os patriotas, e com a arraia miúda no coração. E melhoram-nos obrigando-nos a sacrifícios purificadores, aproximando-nos dos banquetes de bem-aventuranças da Eternidade. As empresas fecham, os desempregados aumentam, os impostos crescem, penhoram casas, automóveis, o ar que respiramos e a maltosa incapaz de enxergar a capacidade purificadora destas medidas. Reformas ridículas, ordenados mínimos irrisórios, subsídios de cacaracá? Talvez. Mas passaremos sem dificuldade o buraco da agulha enquanto os Loureiros todos abdicam, por amor ao próximo, de uma Eternidade feliz. A transcendência deste acto dá-me vontade de ajoelhar à sua frente.
Dá-me vontade? Ajoelho à sua frente, indigno de lhes desapertar as correias dos sapatos. Vale e Azevedo para os Jerónimos, já! Loureiro para o Panteão, já! Jorge Coelho para o Mosteiro de Alcobaça, já! Sócrates para a Torre de Belém, já! A Torre de Belém não, que é tão feia. Para a Batalha. Fora com o Soldado Desconhecido, o Gama, o Herculano, as criaturas de pacotilha com que os livros de História nos enganaram.
Que o Dia de Camões passe a chamar-se Dia de Armando Vara. Haja sentido das proporções, haja espírito de medida, haja respeito. Estátuas equestres para todos, veneração nacional. Esta mania tacanha de perseguir o senhor Oliveira e Costa: libertem-no. Esta pouca vergonha contra os poucos que estão presos, os quase nenhuns que estão presos por, como provou o senhor Vale e Azevedo, como provou o senhor Carlos Cruz, hedionda perseguição pessoal com fins inconfessáveis. Admitam-no. E voltem a pôr o senhor Dias Loureiro no Conselho de Estado, de onde o obrigaram, por maldade e inveja, a sair. Quero o senhor Mexia no Terreiro do Paço, no lugar de D. José que, aliás, era um pateta. Quero outro mártir qualquer, tanto faz, no lugar do Marquês de Pombal, esse tirano.
Acabem com a pouca vergonha dos Sindicatos.
Acabem com as manifestações, as greves, os protestos, por favor deixem de pecar. Como pedia o doutor João das Regras, olhai, olhai bem, mas vêde. E tereis mais fominha e, em consequência, mais Paraíso. Agradeçam este solzinho.
Agradeçam a Linha Branca. Agradeçam a sopa e a peçazita de fruta do jantar.
Abaixo o Bem-Estar. Vocês falam em crise mas as actrizes das telenovelas continuam a aumentar o peito: onde é que está a crise, então? Não gostam de olhar aquelas generosas abundâncias que uns violadores de sepulturas, com a alcunha de cirurgiões plásticos, vos oferecem ao olhinho guloso? Não comem carne mas podem comer lábios da grossura de bifes do lombo e transformar as caras das mulheres em tenebrosas máscaras de Carnaval. Para isso já há dinheiro, não é? E vocês a queixarem-se sem vergonha, e vocês cartazes, cortejos, berros.
Proíbam-se os lamentos injustos. Não se vendem livros? Mentira. O senhor Rodrigo dos Santos vende e, enquanto vender, o nível da nossa cultura ultrapassa, sem dificuldade, a Academia Francesa. Que queremos? Temos peitos, lábios, literatura e os ministros e os ex-ministros a tomarem conta disto.
Sinceramente, sejamos justos, a que mais se pode aspirar? O resto são coisas insignificantes: desemprego, preços a dispararem, não haver com que pagar ao médico e à farmácia, ninharias. Como é que ainda sobram criaturas com a desfaçatez de protestarem? Da mesma forma que os processos importantes em tribunal a indignação há-de, fatalmente, de prescrever. E, magrinhos, magrinhos mas com peitos de litro e beijando-nos um aos outros com os bifes das bocas seremos, como é nossa obrigação, felizes.
António Lobo Antunes
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