Nunca lutes com um porco;
ficas todo sujo, e ainda por cima o porco gosta. Esta frase, do dramaturgo irlandês Bernard Shaw, encerra em si mais do que o sarcasmo em que ele era exímio: é uma lição de sabedoria política. Mas tem limitações, como todas. Às vezes somos mesmo forçados a lutar com porcos, quando algo muito importante depende disso, quando tem mesmo de ser. A questão é a de saber se chegou a altura de o fazer. Porque o risco é sempre enorme, e não tem nada que ver com coragem, ou falta dela: é que o porco leva-nos uma incomensurável vantagem na porcaria, e é muito difícil terçar, com seriedade, argumentos com alguém apostado em sacar de todos os truques baixos do cardápio, de todas as cartadas do populismo, da demagogia e das falsidades mais abjetas, usar todos os maus sentimentos e toda a ignorância e ingenuidade dos que assistem à refrega no sentido de fazer valer a sua posição.
Gosto tanto desta frase que já a usei para recusar um convite para integrar o painel de um programa de debate na TV. O meu interlocutor não a conhecia e ficou deslumbrado: "Foi a Fernanda que inventou?"
Quem me dera. Mas o ponto da recusa era, precisamente, o de saber que ao participar naquele painel estava não só, do meu ponto de vista, a credibilizar alguém que desprezo como a aceitar que o debate era possível. E não era - nem, sobretudo, havia nele qualquer utilidade.
Lembrei-me dessa conversa quando, em abril, vi, na quinta edição do festival Judaica, o filme Denial/Negação, sobre o processo de difamação que o negacionista do Holocausto David Irving colocou, nos anos 1990, a Deborah Lipstadt, uma historiadora judia americana especialista no processo de eliminação dos judeus levado a cabo pelo regime nazi. Um dos momentos cruciais do filme ocorre no início, quando Lipstadt dá uma conferência sobre o seu livro Negar o Holocausto (1993) e é desafiada por Irving, que está na audiência, a provar que o Holocausto aconteceu. Agarrando num maço de notas, este grita: "Dou mil dólares a quem consiga provar que Hitler ordenou o extermínio dos judeus." Lipstadt recusa debater com ele, limitando-se a pedir que se cale e saia. Ele vangloria-se: "Não quer debater comigo, chama a segurança para me calar." A imagem de Lipstadt como uma cobarde opositora da liberdade de expressão que não tem argumentos para o derrotar fica assim registada em vídeo (Irving levou um cameraman), por mais que esta explique que não debate com quem nega o Holocausto porque a existência do Holocausto não é matéria de opinião.
Como não debaterá, exemplifica, com quem diz que Elvis está vivo.
Mas Lipstadt teve mesmo de se confrontar com Irving, e no lugar de arguida. Teve de aceitar provar, num tribunal, 50 anos depois do Holocausto, que este existiu, e que Irving não só escreveu falsidades como fê-lo conscientemente, com o objetivo de branquear Hitler e de acusar os judeus de inventarem o massacre metódico do seu povo. E, o que é mais incrível ainda, não foi fácil fazê-lo. Mas como, perguntar--se-á. Houve milhões de mortos. Houve julgamentos dos responsáveis. Há campos de concentração mantidos como monumentos, há crematórios, há fotos, há testemunhos. Sim, há (ou havia) testemunhos; mas a equipa de defesa de Lipstadt recusou, e bem, submeter sobreviventes à humilhação de serem questionados por Irving. Restavam as provas puras e duras - e dessas, constata-se com espanto, não havia assim tantas. Os nazis destruíram os crematórios quando abandonaram os campos e nenhuma pessoa saiu das câmaras de gás com vida para contar.
Na libertação dos campos houve, claro, quem documentasse as pilhas de corpos emaciados e o estado dos sobreviventes. Mas não houve uma investigação metódica que recolhesse todos os indícios da chacina - ninguém antecipou, perante aquele pavor, que surgiria a tese de que era tudo mentira. A boa-fé é assim: raramente se precavê contra a má.
O que lembra outra frase famosa atribuída a outro famoso ironista, Mark Twain: "Uma mentira pode dar meia volta ao mundo antes de a verdade ter tempo de calçar os sapatos." Porque a verdade - aqui também no sentido de decência e de complexidade do mundo - é chata e comprida, empalidece e gagueja ante o descaramento da falsidade e da demagogia. Porque a verdade necessita de tempo para desmontar as mentiras, para se demonstrar. Porque ser sério e fundamentado dá muito mais trabalho do que mandar bocas e dizer coisas que vão ao encontro dos estereótipos, dos preconceitos, dos ódios. E agora, ainda por cima, temos o estribilho da "censura do politicamente correto" de cada vez que nos indignamos contra afirmações e posições que põem em causa valores basilares da civilização europeia que julgávamos (et pour cause) inquestionáveis para sempre, como a igualdade e o princípio da não discriminação.
O problema é portanto o de saber quando entrar na liça, se alguma vez.
Quando estamos, ao rebater um demagogo populista, a fazer o que ele mais quer - dar-lhe oxigénio, atenção, fazê-lo conhecido, acicatar a sua possível base de apoio através daquilo que ele qualificará como a "censura" dos "elitistas" e "politicamente corretos" - e quando temos mesmo de o combater. É um dilema terrível, como o fenómeno Trump demonstrou - e os seus imitadores tentam explorar.
Fernanda Câncio
Retirado do DN