Francisco Louçã - 1143
Apareceu escrito, na parede da mesquita de Lisboa, o número “1143”. Esboço anónimo de quem não achou que o que pretendia que fosse um insulto merecia explicação e fugiu depressa, nem vale o esforço da interpretação. Fiquemos pelo óbvio: 1143 é o ano da independência diplomática de Portugal (embora só em 1147 ocorra a conquista de Lisboa). Foi assim que começou o que já tinha começado.
Mas há uma pergunta que se pode fazer: nesse ano, onde estava a tolerância e quem era a intolerância? A resposta não é a mais simples. Miguel Esteves Cardoso escreve, e bem, que, nesse tempo como durante muitos mais anos, o Islão era a parte da civilização
.
E, se nos perguntamos quem era a parte tolerante do cerco a Granada, trezentos e cinquenta anos depois (1492), a resposta ainda é: os muçulmanos. Os Reis Católicos eram o reino mais atrasado política, cultural e cientificamente e, sobretudo, mais intolerante e bárbaro. Para estudar medicina, para ler filosofia, a começar pela filosofia clássica da Grécia antiga que era perseguida na Europa, para fazer poesia, para discutir livremente, era melhor viver no mundo muçulmano do que no mundo cristão.
Se nos perguntamos onde estava a parte tolerante durante a longa Inquisição, era no mundo muçulmano: os judeus e outros perseguidos fugiam para Constantinopla, onde eram acolhidos.
A desagregação posterior destas sociedades, o fracasso e a destruição dos seus regimes laicizantes no século XX, o estímulo e protecção ocidental a ditaduras várias, as perpétuas guerras do petróleo, o empobrecimento da massa popular, o desastre ecológico, o sentimento de exclusão e o renascimento de fanatismos assanhados trouxeram-nos aos dias de hoje, com os demónios à solta. Não tinha que ser assim. E, antes de aceitarmos qualquer prosápia sobre o destino eterno de uma parte do mundo, lembremo-nos de que nem sempre as coisas foram iguais ao que hoje conhecemos, que o Islão não fundamenta a deriva dos assassinos do Charlie Hebdo e que, para que a Europa se livrasse da teocracia, foram precisas revoluções vitoriosas. Ainda precisamos delas, talvez mais do que nunca, para que as pessoas possam viver em paz e com a sua consciência.
Francisco Louçã
(do blog Tudomenoseconomia, no jornal Publico)