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Pontos de Vista

Porque tudo na vida tem um ponto de vista

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23
Fev16

Luís Osório - Apenas a minha história

olhar para o mundo

luisosorio.png

 

Apenas a minha história

Com pouco mais de vinte anos foram viver juntas. Marcello Caetano estava no poder, mas a revolução não tardaria. Em Abril de 1974 estavam na sua casa de sempre: um apartamento com uma sala e um quarto, onde construíram uma vida e guardaram livros, discos, fotografias e memórias.


Teresa estudara Filosofia. Comunista convicta, intelectual, inclemente com as derivas burguesas, cinéfila, leitora compulsiva e amiga de José Magro e Dias Lourenço. Dentro do Partido Comunista os personagens que a interessavam eram os idealistas proletários, não os arraçados. Nascera na Chamusca, terra ribatejana.


Cristina era diferente. Comunista menos convicta, burguesa, excelente cozinheira, apaixonada pelos prazeres da vida, ávida de mundo, de bons restaurantes e boas óperas. Adorava Cunhal e Mário Soares, o que irritava Teresa. Os que a interessavam eram os que cativavam pelo olhar, os heróis ou os que eram como ela, amantes das coisas bonitas. Nascera em Kinshasa, no antigo Congo Belga. A sua família era de classe média alta, os pais tinham criadas em casa e estudara no Sagrado Coração de Maria.


Cristina adorava ver debates na televisão, mas ouvia muito mais do que falava. Teresa não via debates, preferia os filmes e séries, mas falava muito mais do que ouvia. Cristina sabia guiar e fazia-o muito bem, Teresa não tinha carta. Cristina cantava maravilhosamente e as festas em casa acabavam sempre com ela a cantar o ‘Fado do Embuçado’, Teresa ouvia-a orgulhosa. Teresa era de uma enorme coragem física, Cristina não. Mas Cristina era uma cozinheira extraordinária, Teresa ficava com as sobremesas quando lhes dava para a loucura. Teresa tratava da casa, roupa e limpezas, Cristina ficava-se pelo sofá com os jornais e revistas estendidos. Sim, estava sempre a ler jornais e os livros não a afeiçoavam. Teresa não lia jornais, apenas livros. Brilhante na retórica e impossível nas línguas, a Teresa. De retórica muito frágil, mas verdadeiramente poliglota, a Cristina.


A casa era um cubículo onde se chegaram a organizar festas para vinte pessoas. No quarto, uma cama de casal onde sempre dormiram. Confortável. E um rádio despertador que as acordava sempre com a música clássica da Antena 2. Uma grande estante com livros, a colecção completa de Saramago e Lobo Antunes, um isqueiro que parecia um microfone, matrioskas… E um livro que me iluminou a infância, Os Homens que Mudaram o Mundo. Ali aprendi que Da Vinci ‘inventara’ a Gioconda.


Até aos 15 anos passei quase todos os fins-de-semana naquela casa de bonecas. Acalmava assim que batia à porta. Não há palavras que definam o cheiro, a tranquilidade, o apaziguamento… A Cristina e a Teresa eram os meus referenciais de estabilidade, quando a tempestade parecia tudo querer levar bastava ouvi-las para que o mar revolto se transformasse num riacho de água morna.


Foi lá, numa máquina de escrever pouco usada, que escrevi o primeiro texto jornalístico da minha vida. Era lá que procurava conforto para dúvidas amorosas. Foi lá que tive a primeira crise de febre reumática – «ai Teresa tira-me estas bolas gigantes de cima das pernas», lembro-me de gritar num delírio febril. Foi com elas que vi o primeiro filme de terror, um Carrie que me obrigou a dormir na sua cama. Foi lá que aprendi a argumentar, que especulei sobre Deus e o poder, que vi Maradona a fintar meia equipa de Inglaterra no Mundial de 1986. Foi com elas que andei em manifestações. Foi naquela mesa que almocei e jantei as melhores refeições da minha vida, os melhores assados, o melhor pudim de peixe. Foi naquele sofá que li o primeiro editorial, do Augusto Abelaira creio, era ali que eu e a Zé deixávamos o André e o Miguel quando, bebés de colo, nos impediam de ir aos espectáculos ou ao cinema. Como me ralharam quando me separei. Chorei com elas e voltei a chorar na amargura de um segundo divórcio. Era a elas que a minha mãe telefonava quando não me portava bem. Foi lá.


Cristina adoeceu. O diagnóstico não podia ser mais brutal. Cancro nos pulmões e um grande combate à sua frente. Encarou com coragem a situação e Teresa prometeu-lhe que resolveriam o problema.


Dezenas de ciclos de quimioterapia. Radioterapia. Comprimidos. O cancro a invadir-lhe os ossos, tratamentos para a dor, perda de mobilidade, consultas, mudanças de terapêutica e Teresa sempre presente. Em todas as horas. Comprou-lhe bonsais. A cada uma deu um nome, falava com elas, falava por ela e pela Cristina. Deitava-a. Levantava-a. Cozinhava. Dava-lhe banho. Oferecia-lhe flores, tratava-a com um amor que nunca vi por ninguém.


Cristina acabou internada. E até ao último dia Teresa esteve no hospital. Apanhava o autocarro de manhã, voltava no autocarro à noite nos dias em que não estivesse alguém da família. Sem uma única falta. Sempre ao seu lado, nos dias de inconsciência, nos mais animados, em todos. Enfermeiros comentaram, médicos e auxiliares a mesma coisa. A sua dedicação foi total. Absoluta. Sem reticências.


A Cristina morreu. E a Teresa regressou ao lugar onde nascera. Vive com as memórias de uma vida que está amputada de uma parte de si. Creio que espera.


A Cristina era a irmã mais velha de meu pai, tia de sangue. A Teresa, a tia mais importante que tive. Uma e a outra eram o resultado do complemento das duas, não existiam sozinhas. Nunca pensava «vou para a minha tia». Elas eram as minhas tias. Construíram uma vida e ajudaram a criar-me. De todas as relações que tive, relações de afecto, familiares, foi a mais estável. A que mais me fez bem.


Por estes dias, achei por bem partilhá-lo. Sem juízos de valor ou panfletos, apenas partilhar o que em mim é silêncio e gratidão.

 

Luís Osório

Retirado do Sol

13
Mar15

António Lobo Antunes - Os pobrezinhos

olhar para o mundo

"Os Pobrezinhos

Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida.

Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria:

- Eu não sou o seu pobre; eu sou o pobre da minha Teresinha.

O plural de pobre não era «pobres». O plural de pobre era «esta gente». No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os seus animais domésticos habitavam, isto é, uma bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de reis magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre. Os pobres surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos, e as minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:

- Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.

Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer aos pobres, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto

(- Esta gente, coitada, não tem noção do dinheiro)

de forma de deletéria e irresponsável. O pobre da minha Carlota, por exemplo, foi proibido de entrar na casa dos meus avós porque, quando ela lhe meteu dez tostões na palma recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico

- Agora veja lá, não gaste tudo em vinho

o atrevido lhe respondeu, malcriadíssimo:

- Não, minha senhora, vou comprar um Alfa-Romeu

Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros

- O que é que o menino quer, esta gente é assim

e eu entendi que ser pobre, mais do que um destino, era uma espécie de vocação, como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.

Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. O padre Cruz era um sujeito chupado, de batina, e a Sãozinha uma jovem cheia de medalhas, com um sorriso alcoviteiro de actriz de cinema das pastilhas elásticas, que me informaram ter oferecido exemplarmente a vida a Deus em troca da saúde dos pais. A actriz bateu a bota, o pai ficou óptimo e, a partir da altura em que revelaram este milagre, tremia de pânico que a minha mãe, espirrando, me ordenasse

- Ora ofereça lá a vida que estou farta de me assoar

e eu fosse direitinho para o cemitério a fim de ela não ter de beber chás de limão.

Na minha ideia o padre Cruz e a Saõzinha eram casados, tanto mais que num boletim que a minha família assinava, chamado «Almanaque da Sãozinha», se narravam, em comunhão de bens, os milagres de ambos que consistiam geralmente em curas de paralíticos e vigésimos premiados, milagres inacreditavelmente acompanhados de odores dulcíssimos a incenso.

Tanto pobre, tanta Sãozinha e tanto cheiro irritavam-me. E creio que foi por essa época que principiei a olhar, com afecto crescente, uma gravura poeirenta atirada para o sótão que mostrava uma jubilosa multidão de pobres em torno da guilhotina onde cortavam a cabeça aos reis"
 
UMA CRÓNICA DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES

DEDICADA A ISABEL JONET

(Presidente do Banco Alimentar Contra a Fome)
 

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